terça-feira, janeiro 24, 2006

A noite mais bela do ano

A noite caía estrelada sobre um dos bairros mais ricos da cidade.
Das casas sentia-se um aroma convidativo a doces e o ambiente era acolhedor. Todos se sentiam especialmente diferentes. Árvores cheias de luz e cor, rodeadas de grandes embrulhos, brilhavam aos olhos das crianças. Pequenas figuras rodeadas de musgo e em volta do menino Jesus recriavam o espírito da noite mais bela do ano. A alegria e a música reinavam no seio de todas aquelas famílias reunidas, trocando presentes e contando histórias.
Duas grandes pupilas pretas observavam da janela o movimento das ruas, na esperança de ver alguma cara conhecida. Estava ansioso por estrear a bola nova e dar uns chutos com os amigos.
Com um sorriso no olhar, desceu as escadas a correr e foi até ao parque em frente de sua casa. Os amigos já lá estavam. Durante a hora seguinte «golo», «passa a bola», «é falta», foram as palavras que mais se ouviram.
Do outro lado do parque estava um miúdo sozinho, sentado a um canto. Olhava fixamente para aqueles mini-craques ágeis e destemidos. Enquanto se dirigia para eles, pensava na sua vida. No bairro de onde vinha, a noite também caía estrelada, e apesar de ser a noite mais bela do ano, não havia festa. Não havia ramos enfeitados, nem doces, nem dinheiro para presentes. Era uma noite como tantas outras. Nas ruas, meninos cheios de fome e sujos juntavam-se ao ritmo do HipHop e do Rap para esquecer o frio.
Aproximou-se com passos descontraídos, enquanto relembrava as únicas palavras que o tio lhe tinha dirigido: «Desenrasca-te, come qualquer coisa e desaparece da minha frente». Ninguém deu pela sua presença, até que, de repente, sentiu uma forte pancada no estômago e deixou escapar um gemido de dor. Agarrou a bola, agora caída a seus pés, e caminhou até ao local onde estavam os outros.
- Acho que isto é vosso. - disse José com a mão no estômago.
- Desculpa. Estás bem? - perguntou João.
- Já está a passar.
- Queres jogar connosco?
- Quero.
- Nem pensar! Vai-te embora. Não queremos aqui miúdos todos rotos. - barafustou António.
- António, pára com isso! Ele não nos fez mal nenhum. - defendeu-o João.
- E depois? Já viste o aspecto dele? - observou, fazendo uma careta de nojo e desprezo.
José permanecia no mesmo sítio. Só desejava sair dalí.
- Eh pá, parem com isso. Não discutam por minha causa. Eu vou bazar...
- Não, não vais. Ficas e jogas connosco. - insistiu João, pondo-se ao lado dele.
- Se ele ficar eu não jogo mais! - disse António amuado.
- Então podes ir. - disse João decididamente.
- Nós concordamos com o João. - disseram os outros meninos.
António foi-se embora furioso. Estava habituado a que lhe fizessem todas as vontades, e, por isso, detestava ser contrariado.
- Não lhe ligues. Vamos jogar.
Passaram grande parte da noite a fingir serem os novos membros da Selecção e a conversar.
Aos onze anos, João era uma criança de conversa agradável e embora sendo rico, dava-se bem com todas as pessoas. Ficou muito admirado ao descobrir que José não sabia ler nem escrever e para ganhar a vida fazia objectos de madeira. Vivia com o tio, um homem derrubado pelo consumo da droga, e que estava sempre ausente.
Por sua vez, João contou-lhe que não tinha assim tantos amigos como parecia e que a maioria dos seus colegas eram mimados e egoístas. Era filho único e o seu verdadeiro companheiro era um cão rafeiro que tinha acolhido numa noite de chuva. Os pais nunca estavam em casa e para o compensar compravam-lhe presentes caros.
- Toma. Quero que fiques com ela para jogares com os meninos do teu bairro.
- Eh pá, não posso aceitar. Foi um presente dos teus pais.
O dia amanheceu caiado de branco. Não tinha pregado olho, mas a sua obra-prima estava pronta. Nunca se tinha empenhado tanto.
O parque estava repleto de pessoas que, aqui e além, se divertiam e aproveitavam o que um dia como aqueles tinha para oferecer.
- Ai! Quem é que me atirou com neve para a cabeça? - indagou João, olhando para todos os lados.
- Fui eu. - José ria-se perdidamente.
- Ah, foste tu! - exclamou João, atirando-lhe também com um gande pedaço de neve.
- Vim entregar-te isto.
- Que espactáculo! Um carro de madeira antigo! Obrigado!
- É uma forma de te agradecer pela bola.
- Adoro carros! Foste tu que fizeste?
- Sim, passei a madrugada toda a fazê-lo.
Aquele dia foi o ponto de partida para uma grande amizade. José passou a ir á escola de manhã e à tarde vendia os objectos de madeira. Ajudado pelos pais de João, o seu tio conseguiu recuperar-se da droga.
A chuva caía intesamente lá fora. João estava sentado à lareira com o neto que o escutava atentamente, fascinado com aquela história.
- Avô, achas que um dia também vou receber um carrinho de madeira como tu?
- Um carrinho não sei, mas um amigo de verdade sim.
- Gosto muito de ti, avô! - disse André, abraçando o avô pelo pescoço.
- Eu também gosto muito de ti! Agora são horas de ir dormir.
- Boa noite, avô. - disse bocejando.
- Boa noite. - disse, dando um beijo carinhoso na testa do neto.
João ficou ainda alguns instantes a mirar as chamas que ardiam, pensando na sorte que tinha por ter encontrado um amigo como o José.
Todos os fins-de-semana passavam horas no parque. Mesmo depois de adultos, com a idade a pesar sobre o corpo, tinham mantido aquele hábito.
- Estamos a ficar velhos para isto. - observou João, sentindo a habitual dor nas costas.
- As pernas já não são ágeis como antigamente. Mas continuo a fintar melhor que tu!
- Pois é, no entanto, não sou eu que estou a perder por três a um.
- Isso, é pura sorte, meu caro amigo.
- Claro!
- E se fossemos beber um copo para aliviar as dores do tempo?
- Vamos a isso.
Conto escrito por: Marta Amado